O Mês da Consciência Negra convida a um exercício coletivo de memória e responsabilidade. A data de 20 de novembro carrega o legado de Zumbi dos Palmares e reacende a necessidade de revisitar as desigualdades estruturais que moldaram, e ainda moldam, as relações raciais no Brasil.
No TJMSP, essa reflexão ganha contornos concretos quando se encontram as histórias das pessoas que compõem a Instituição. São trajetórias que revelam avanços e desafios, e nos mostram a importância de manter viva a construção de um ambiente cada vez mais equitativo.

Cleonice Ismael
Assistente Técnico de Gabinete Judiciário (Desembargador Militar Fernando Pereira)
Em 1993, Cleonice recebeu um telegrama que mudaria o rumo de sua vida. Tinha acabado de sair de uma metalúrgica e, incentivada pela mãe, prestara o concurso do Tribunal de Justiça Militar de São Paulo. “Ela arranjou a apostila, o CPM, uma Constituição pequena e o Estatuto do Servidor”, relembra, com um sorriso. Sem grandes expectativas, foi surpreendida com a notícia da aprovação. “Entrei pela Contabilidade, caí aqui de paraquedas”, conta.
O que começou como um passo incerto se transformou em uma trajetória de décadas. Incentivada por seu diretor à época, Jorge Minoru — “ele dizia que eu ainda iria substituí-lo” —, Cleonice decidiu cursar o ensino superior. Passou tanto em Ciências Contábeis quanto em Direito, e seguiu o caminho jurídico. Em 2012, tornou-se Assistente Técnico no Gabinete do Desembargador Militar Fernando Pereira.
Hoje, representa uma trajetória que evidencia avanços da presença de pessoas negras em espaços institucionais, mas também reforça o quanto esse caminho ainda precisa se expandir. Cleonice carrega, na própria história, o símbolo desse avanço e a lembrança do porquê o 20 de novembro segue sendo necessário: a luta por equidade não é apenas histórica; é cotidiana.

João André Ferreira
Agente Operacional Judiciário (Seção de Administração e Manutenção Predial)
João André chegou ao Tribunal em janeiro de 1999, vindo do IPT, após ser convocado pelo concurso de 1994. Antes disso, já tinha uma formação sólida: estudou no SENAI entre 1989-1990, tornando-se profissional em Refrigeração e Ar-Condicionado, concluiu curso técnico em Eletrotécnica pelo Centro Paula Souza em 1996 e se formou em Desenho Industrial pela Oswaldo Cruz em 2002.
Encontrou no TJMSP um ambiente com demandas técnicas diversas e um ritmo intenso, que dialogava diretamente com suas formações. Ao longo dos anos, acompanhou mudanças estruturais importantes, inclusive a crescente oferta de palestras e ações voltadas à reflexão racial. Acredita que ainda há muito a avançar, mas cada passo institucional conta.
“A sociedade cobra do povo preto uma luta que não foi ele que criou. O racismo é uma estrutura, e cabe à sociedade — não às vítimas — o compromisso de desmontá-la”, pontua João. Na percepção dele, pequenas ações podem ser transformadoras. A difusão de histórias de personalidades negras importantes, o compartilhamento de conteúdos educativos para além do Mês da Consciência Negra e a valorização constante da cultura afro-brasileira. “O conhecimento compartilhado é ferramenta poderosa”. Suas palavras carregam a firmeza de quem viveu o suficiente para enxergar a estrutura, e não perderá a esperança de vê-la transformada.

Larissa de Paula Xavier de Figueiredo
Escrevente Técnico Judiciário (5ª AME)
Larissa perdeu os pais muito cedo, circunstância que a levou, ainda na infância, a conviver com processos e questões jurídicas que despertaram seu interesse pelo Direito. Essa vivência foi além da mera curiosidade, criando a percepção de que, para pessoas negras, compreender o sistema jurídico também pode ajudar na construção de um futuro melhor — para si e para sociedade.
Na vida adulta, escolheu o Direito com o objetivo de ampliar seu horizonte de oportunidades e, sobretudo, ingressar no serviço público. Já tinha iniciado a sua trajetória profissional quando tomou conhecimento sobre o concurso do TJMSP. À época, trabalhava como advogada em uma associação de policiais militares de Mogi das Cruzes, sua cidade natal. “Minha nomeação, em 2022, representou a materialização de um sonho construído com muita dedicação e abdicação”, conta.
Na perspectiva de Larissa, as cotas raciais são uma política de ação afirmativa fundamental para garantir o acesso equitativo a oportunidades, promover a inclusão e combater o racismo estrutural em todas as suas formas. “A presença de mais pessoas negras em espaços historicamente ocupados por pessoas brancas gera pertencimento e rompe barreiras simbólicas que antes afastavam tantos talentos. Acredito que as cotas permitem, todos os dias, que mais pessoas sonhem com a concretização de seus objetivos, transformando realidades até então distantes e abrindo novas perspectivas de vida. As cotas raciais são um instrumento essencial de justiça social e reparação histórica”.
Para ela, a Consciência Negra reforça o compromisso de refletir sobre equidade, ampliar debates e estruturar ações que ultrapassem a data. É nessa intersecção entre experiência pessoal e responsabilidade coletiva que ela constrói sua trajetória.

Eduardo Alberto Marcelino
Chefe de Seção Judiciário (Seção de Arquivo e Gestão Documental)
Eduardo Alberto Marcelino iniciou sua trajetória em 1991, aos 15 anos, como menor colaborador eventual. O Tribunal foi não apenas seu primeiro emprego, mas o lugar onde cresceu pessoal e profissionalmente. Em 1994, tornou-se Agente Judiciário e passou boa parte da vida institucional na 2ª Auditoria Militar Estadual, de 1991 a 2004, período em que amadureceu, formou vínculos e desenvolveu a habilidade de transitar por rotinas complexas.
Em 2005, assumiu a função de Encarregado do Arquivo, depois de uma breve passagem pela Seção de Administração e Manutenção Predial. Em 2016, foi nomeado Chefe da Seção de Arquivo e Gestão Documental, cargo que ocupa até hoje. Durante mais de três décadas, construiu uma trajetória que entrelaça o aprendizado técnico com uma formação humana intensa, fruto do convívio com magistrados(as), colegas e da própria imersão no universo do Direito, área que o motivou a buscar estudos e ampliar horizontes.
Com esse olhar de longa duração, Eduardo observa mudanças importantes. “Percebi, ao longo das décadas, uma mudança na forma como o tema é abordado. No início, a pauta da questão racial era quase invisível no ambiente institucional. Hoje, há uma maior conscientização e formalização de ações de inclusão, como a realização de palestras e a inclusão da temática em pautas internas”, comenta. O Mês da Consciência Negra, para ele, simboliza um momento de reflexão profunda, um convite para enxergar e valorizar a presença competente de pessoas negras em funções diversas, sobretudo nas de liderança, onde a representatividade ainda precisa crescer. “Em instituições públicas como o TJMSP, pautadas estritamente na legalidade e nos princípios constitucionais, este momento ajuda a construir, no cotidiano, um ambiente verdadeiramente multirracial e inclusivo, e a conscientizar as pessoas da necessidade de construirmos um pensamento antirracista”.
Eduardo acredita que fortalecer o tema exige constância. Comunicações internas frequentes, treinamentos, campanhas e atividades educativas sobre letramento racial, com foco na identificação e combate aos vieses inconscientes e ao racismo estrutural.”

Marcelo de Souza Ferreira
Agente de Segurança Judiciário (Seção de Conformidade de Distribuição)
Antes de ingressar no Tribunal, Marcelo trabalhou na construção civil como pintor, sempre em busca de melhorias salariais e um futuro mais promissor. Foi quando, em 2012, decidiu entrar no mundo dos concursos públicos. Em 2013, foi aprovado na Polícia Civil e, no mesmo ano, fez o concurso para Agente de Segurança Judiciária do TJMSP. Concorrendo com 6 mil candidatos para apenas 4 vagas, foi o terceiro colocado, sendo classificado depois da prova prática de direção.
Em novembro de 2014, optou por tomar posse nesta Corte, e desde então realiza a sua função com muita dedicação e compromisso. “Tenho muito orgulho de fazer parte desta instituição e contribuir para a justiça”.
Pensando pela perspectiva racial, Marcelo vê grandes evoluções nos últimos anos. “A conscientização sobre a importância de valorizar o outro, independente da cor da pele, tem sido cada vez maior”. Para ele, o Mês da Consciência Negra proporciona uma oportunidade importante para reconhecermos a luta histórica das populações negras no Brasil, o que nos ajuda a valorizar a diversidade e inclusão.

Marco Antonio Silva
Escrevente Técnico Judiciário (EJMSP)
Marco Antonio está no Tribunal desde 1995. Após ingressar por concurso público, começou a atuar no Departamento Pessoal (atual RH) e permaneceu por mais de duas décadas naquele setor. Em 2022, seguiu para a Escola Judicial Militar, onde atua até hoje. Quando pensa nas transformações relacionadas à pauta racial nesta Corte, ele percebe mudanças significativas proporcionadas pelos avanços na sociedade, que o Tribunal tende a acompanhar.
No início, muitas temáticas eram recebidas com resistência, mas ele enxerga amadurecimento, maior compreensão dos conceitos e menos naturalização de práticas que antes passavam despercebidas. “Eu mesmo não me permito fazer coisas que fazia antes, porque antes eu tinha o adendo do desconhecimento”, disse, ao comentar a própria evolução diante das discussões sobre racismo.
Para Marco, o Mês da Consciência Negra tem papel estratégico dentro de uma instituição pública. Ele valoriza a iniciativa e entende que a discussão precisa ser constante, não sazonal. “A mudança só acontece quando um problema é exposto e realmente debatido, e nesse movimento nós temos uma oportunidade de aprofundar reflexões e reforçar o compromisso com a pauta antirracista”.
Pensando em práticas transformadoras, acredita que ouvir as histórias das pessoas é a chave para fortalecer o respeito à diversidade racial. Defende mais visibilidade às trajetórias individuais e sugere que esse tipo de reconhecimento faça parte da rotina do Tribunal. “Quando servidores conhecem a vida, a luta e o percurso de colegas negros e negras, deixam de lidar apenas com estatísticas e números, passando a enxergar o impacto humano por trás do trabalho”. Essa aproximação, em sua visão, abre caminho para mudanças reais e para um ambiente mais sensível às experiências de cada pessoa.

Ana Caroline Borges Martins
Escrevente Técnico Judiciário (Cartório Criminal)
Ana Caroline ingressou no Tribunal há cerca de um ano e meio, assumindo sua função no Cartório Criminal, onde permanece desde então. Como morava em Belo Horizonte (MG), sua cidade natal, a mudança de estado para tomar posse marcou o começo de uma fase intensa e cheia de desafios. Ao chegar, encontrou uma equipe que a acolheu com generosidade, o que facilitou muito a sua adaptação e fortaleceu o sentimento de pertencimento.
A vivência diária no Tribunal ampliou sua compreensão sobre a importância das cotas raciais como ferramenta de correção histórica e ampliação de oportunidades. Para ela, a representatividade em espaços institucionais não é apenas um ideal. “A presença de mais pessoas pretas e pardas em instituições como o TJMSP é uma condição para que instituições públicas reflitam a diversidade do País”.
Caroline reconhece o Mês da Consciência Negra como uma oportunidade valiosa de valorizar trajetórias, reconhecendo desafios e reforçando o compromisso com políticas inclusivas. Práticas simples podem ter um grande impacto, na percepção dela: campanhas educativas, criação de espaços de diálogo, iniciativas de sensibilização. “Gesto a gesto, é possível construir um ambiente mais seguro e respeitoso”.

Daniel Silva Mendes
Escrevente Técnico Judiciário (Seção de Execuções Criminais)
Daniel ingressou no TJMSP em janeiro de 2019, diretamente nas Execuções Penais, onde atua até hoje. Sua experiência no setor lhe deu contato intenso com a dinâmica da Justiça, com rotinas exigentes e um ambiente que demanda precisão e humanidade.
Em sua percepção, a maior presença de pessoas negras em instituições como o TJMSP, um avanço proporcionado pela implementação bem-sucedida das cotas raciais, precisa ser acompanhada da representatividade em cargos de gestão e assessoramento. “Ainda há um longo caminho de equidade a percorrer”.
O Mês da Consciência Negra, para Daniel, é um convite à reflexão, mas também um lembrete de que o estudo, a dedicação e a persistência seguem indispensáveis. Acredita que instituições públicas podem avançar ainda mais no âmbito de diversidade, equidade e inclusão, com a implementação de ações afirmativas que criem oportunidades reais de ascensão para profissionais negros(as).
Em sua trajetória, carrega a firmeza de quem sabe que a mudança estrutural não acontece sozinha — ela precisa ser planejada, construída e sustentada ao longo do tempo.
Compromisso do Poder Judiciário
A equidade racial também exige atenção prática e jurídica. No âmbito do Poder Judiciário, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial, publicado pelo Conselho Nacional de Justiça, orienta magistrados e servidores a identificar elementos de discriminação, vieses e desigualdades históricas que impactam diretamente os processos judiciais.
O documento reforça que não há imparcialidade verdadeira sem o reconhecimento das assimetrias que estruturam a sociedade. Em um tribunal especializado como o TJMSP, aplicar essa abordagem significa olhar com rigor para todas as etapas da atividade jurisdicional, das rotinas administrativas às decisões.
Internamente, esse debate é conduzido pelo Supervisor de Serviço da Diretoria de Recursos Humanos, José Mario de Castro Bello, representante do Tribunal na pauta da igualdade racial. A atuação contínua na temática dialoga com as propostas levantadas pelos próprios servidores, como a ampliação de iniciativas de letramento racial, rodas de conversa, treinamentos, maior visibilidade para referências negras na comunicação institucional e ações educativas permanentes.
Como parte da programação do Mês da Consciência Negra, o Tribunal promoverá, no dia 27 de novembro, às 11h, uma visita ao Instituto Moreira Salles para a exposição “Gordon Parks – A América sou eu”.
A mostra apresenta cerca de 200 obras produzidas entre as décadas de 1940 e 1970, incluindo fotografias, filmes, periódicos e livros que exploram a vida da população negra nos Estados Unidos e seu enfrentamento ao racismo. O percurso traz retratos marcantes de Malcolm X, Martin Luther King e Muhammad Ali, além de séries dedicadas à infância, ao trabalho e aos territórios urbanos.
Para além do mês de novembro, o TJMSP reafirma seu compromisso de transformar essa consciência em prática, empenhado em ampliar caminhos que contribuam com a redução das desigualdades históricas.





